Esta Crônica o Capoeira-Pesquisador Raphael Pereira Moreno (São Carlos-SP) faz uma análise crítica sobre a origem da Capoeira
Autor: Raphael Pereira Moreno
Uma característica que torna esse assunto tão instigante e difícil de ser esgotado é a falta de registros sobre a escravidão no Brasil. Devido a essa peculiaridade, acabam surgindo diversas hipóteses divergentes sobre a história do aparecimento da capoeira. Inclusive mestres renomados como Bimba e Pastinha discordavam sobre esse assunto. Para Bimba, os negros eram de Angola, mas a capoeira teria surgido no Recôncavo Baiano. Em contra partida, para Pastinha, a capoeira teria vindo pronta da África.
A maioria dos pesquisadores que defendem o surgimento na África, se baseiam na ligação entre a capoeira e o N'Golo ou Dança das Zebras, ritual onde os negros Bantos, através de cabeçadas e pontapés, disputavam o direito de casar com uma jovem. Dizem inclusive que a dança apenas mudou seu nome aqui no Brasil. Na língua Kikongo, falada em algumas regiões de Angola, N'Golo significa força ou poder.
Porém, durante o início da escravidão no Brasil, na tentativa de evitar ou minimizar possíveis rebeliões, os navios negreiros traziam negros de diversas etnias em grupos misturados, amontoados, sem higiene nem alimentação adequada, e assim eles seguiam para trabalhar nas fazendas. Essas etnias possuíam línguas, danças, lutas e culturas diferentes. Portanto, sem conseguir se comunicar, e não tendo ligação cultural alguma entre eles, os negros teriam muito mais dificuldade de se organizar e lutar pela liberdade.
Esse fato torna pouco confiável a hipótese de que a capoeira já tenha vindo pronta da África, trazida pelo navio negreiro. Além disso, em nenhum outro país a capoeira foi encontrada, inclusive na África não há registros. Em países que se utilizaram dos escravos africanos, como Martinica e Cuba, existem algumas manifestações parecidas, lutas que se assemelham à capoeira, pois segundo Muniz Sodré, é conhecida a tradição de lutas africanas que utilizavam pernadas e cabeçadas para atacar. No importante registro “Viagem pitoresca ao Brasil”, Debret também registrou os negros volteadores, que seguiam ao lado dos enterros dando saltos mortais e outras acrobacias.
Analisando todos esses fatos, julgo mais aceitável que tenha ocorrido aqui no Brasil, uma fusão entre diversas lutas e danças de diferentes regiões africanas, estas sim trazidas na memória dos negros. E essa fusão ocorrendo no Brasil, nos leva a conclusão de uma capoeira afro-brasileira. Criada a partir das manifestações africanas, porém em solo brasileiro. Portanto, dependendo da interpretação, posso dizer que a capoeira teve seu princípio na África, levando em consideração a origem das manifestações que foram utilizadas, consciente ou inconscientemente, na criação da capoeira. Mas também posso afirmar que nossa arte teve seu início no Brasil, pensando no local onde acredito que tenha surgido.
De qualquer forma, é inegável a ligação entre a capoeira que conhecemos hoje e o povo africano. Desde a utilização dos cantos ao formato da roda de capoeira, tudo nos revela a presença dos valores fundamentais africanos nos rituais. Porém a capoeira com o passar do tempo também foi absorvendo os fatores locais, como por exemplo o lado musical. Sabe-se que dos negros iorubás a capoeira recebe o ritmo ijexá e que os negros bantos contribuíram com o berimbau, mas segundo Dr. Decânio, na capoeira que temos hoje, além da grande contribuição africana, os portugueses também tiveram sua participação introduzindo a chula, o improviso, o pandeiro e a viola.
Ambiente rural ou urbano?
Outra questão importante, que também segue as mesmas características de falta de registros, é , uma vez no Brasil, por onde a capoeira teria surgido e se alastrado. Seria pela zona rural, através do tráfico negreiro durante o século XIX, quando já era proibida a venda de escravos, ou através dos portos, em ambiente urbano?
Alunos de mestre Bimba, como Decânio e Acordeon, defendem uma propagação da capoeira, especialmente na Bahia, através dos portos, em zona urbana. Para eles, durante o trabalho nos portos, ficando na dependência das marés, os trabalhadores ocupavam o tempo de espera batucando e jogando capoeira. Eles nos contam que os focos de capoeira surgiram primeiro nas cidades que possuíam portos.
Mas na época colonial, durante o período em que a escravidão foi a base da economia brasileira, o negro foi mantido cativo como objeto de trabalho nos engenhos, canaviais e cafezais. Com o tempo, sem concordar com os maus tratos do cativeiro, os negros começam a fugir das senzalas se utilizando dos pés, mãos e cabeça para lutar contra feitores armados com armas de fogo e o temível chicote. De modo inteligente, camuflando o treinamento de guerra em dança, os negros conseguiam praticar essa habilidade de luta sob os olhares dos seus senhores. Quando conseguiam fugir, os negros se juntavam nas matas em quilombos, numa verdadeira luta pela sobrevivência. Existiram diversos quilombos, sendo o mais famoso o Quilombo de Palmares, na serra da barriga, Alagoas. Nele surge Zumbi, o último líder de Palmares, se tornando o maior símbolo da luta dos negros pela liberdade.
É discutível o modo como a capoeira se propagou, mas acredito que o seu surgimento esteja ligado à luta pela liberdade dos negros escravos das fazendas, em ambiente rural. Hoje em dia ainda continuamos nessa luta pela liberdade... a liberdade de expressão, a liberdade de preconceitos.
Mas será que em todo lugar foi assim? Será que nos focos iniciais de capoeira: Bahia, Rio e Pernambuco, a história foi a mesma? Quais foram os legados da capoeira desses três estados? Continuamos a discussão....
São Carlos - Nov/2004
Fontes consultadas:
1. Waldeloir Rego. “Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico”. Ed Itapoan, Salvador, 1968.
2. Decanio. “Herança de Pastinha. Metafísica da Capoeira”. Ed. caseira.
3. Nestor Capoeira. “Os fundamentos da malícia”. Ed. Record.
5. Debret, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. SP, Círculo do Livro.
6. Documentário. “A capoeiragem no Brasil”. TVE Bahia.
7. Ana Cristina Vargas. “Escravo da ilusão”, Ed. Boa Nova
Autor: Raphael Pereira Moreno
Via: Jornal do Capoeira
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