Nesta crônica Raphael Pereira Moreno emite seu ponto de vista a respeito da função do cantar, e do cantadô, na roda de Capoeira
“A capoeira, pela sua própria natureza, é um jogo de inteligência...
Um esconde-esconde, um faz de conta, um eterno improviso...
Uma contínua gozação!
Ganha quem engana mais e melhor
Para enganar é preciso ter malícia
É preciso ter inteligência!
Capoeirista burro é um erro de lógica...
Não pode ser burro, por que.
A capoeira é o inverso de burrice!
Começamos pela existência da chula
Curto improviso que inicia a vadiação
Para cantar improviso é preciso ser poeta
Para ser poeta é preciso ser inteligente!
Burro não faz versos, apenas zurra!
Para cantar o improviso introdutório
O cantador deve conhecer todo o repositório litero-filosófico da roda
Manifestá-lo de modo ritmado conforme a tradição musical da capoeira
Respeitando a herança dos africanos
Cantando num estilo tonal
Ajustando nosso falar ao tom dos iorubas
Logo não pode ser burro
Nem teimoso como o jegue!”
Dr. Decânio
A capoeira traz em todos os seus componentes a marca da criatividade de um povo. Seja na expressão do corpo do jogador, na denominação dos movimentos, na pintura (ou não) dos instrumentos, no modo de vestir e falar, mas principalmente na musicalidade.
A música é um dos aspectos mais importantes na capoeira... a capoeira lúdica. Como mestre Bimba ressalta, ela é o instrumento do “juiz”, o mestre da roda. As canções, bem utilizadas por cantadores experientes, cadenciam o jogo, marcam o ritmo a ser seguido pelos jogadores, e durante a roda elas podem tanto acalmar os ânimos como ajudar a inflamá-los.
Durante as ladainhas, chulas e corridos, o cantador demonstra todo seu momento, seu sentimento. Ele passa para os capoeiras a sua mensagem... mas sempre de modo mandingueiro, que deve ser “pros menos desavisados” não entenderem! Com o berimbau na mão, o capoeira-poeta cria, avisa, caçoa, aconselha, relembra, evoca proteção, elogia, improvisa, reverencia seus orixás, seu santo protetor... Dá o recado!
Waldeloir Rego, em livro da década de 60, realizou um excelente trabalho de pesquisa e análise de diversas cantigas de capoeira. Leitura obrigatória para quem está interessado em entender as entrelinhas das músicas. Nesse trabalho ele separa as cantigas mais tradicionais por tipo (ladainha, corrido etc), assunto, etc... além de explicar algumas expressões não tão comuns hoje em dia.
Como Dr. Decânio nos ensina no trecho introdutório desse texto, de maneira clara: “...Para cantar improviso é preciso ser poeta...”. O poeta do povo, com versos simples e mensagens fortes. Misturando os fatos cotidianos, fazendo alusões aos acontecimentos da vadiação, aos mestres que já se foram e aos que ainda estão conosco. Quem já ouviu Mestre Canjiquinha cantar a sua alegria numa roda de capoeira entende o que é improvisar.
Em recente show no Sesc - São Carlos, outra figura importantíssima da cultura afro-brasileira nos brindou com sua alegria e criatividade. Durante um show inesquecível, o sambista bahiano Riachão provou todo o seu talento fazendo a assistência se movimentar do início ao fim. Inclusive ele mesmo, com seus 81 anos, sambou o show inteiro.
Voltando à capoeira, para representar o papel de cantador e improvisar, é preciso entender as cantigas que já fazem parte da capoeira, as ditas músicas “tradicionais”. Hoje em dia as pessoas estão repetindo músicas sem nem mesmo querer saber do que se trata. Mas antes de criar seus versos, é necessário ao capoeira uma espécie de iniciação, uma boa pesquisa nos discos e fitas ouvindo os cantadores já consagrados. Além disso, em todas as rodas por onde passamos devemos prestar atenção especial em quem está cantando e no modo que a pessoa está fazendo. Como já descrito antes, as músicas nos contam tudo o que se passa na roda.
Outra característica importante é o modo de cantar. Como ouvi de mestre Ananias, numa roda em Piracicaba: “O capoeira tem que cantar com emoção, e não berrar na roda”. O cantador tem que possuir certa sensibilidade musical, não necessariamente ter profundo conhecimento de teoria musical. Acredito que grandes mestres cantadores como Waldemar da Liberdade, Caiçara, Canjiquinha, Bimba, Ezequiel, Monteiro, Swingue, João Grande, Moraes e muitos outros, não tiveram aulas de música. Não que a teoria seja prejudicial, mas na verdade eles não precisavam desse artifício, já possuíam ou aprimoraram com o tempo a sensibilidade musical.
Da mesma forma que o cantador possui muita responsabilidade numa roda, os capoeiras que formam a assistência têm seu papel, muito importante também. Qualquer pessoa, do mais leigo no assunto ao mais experiente capoeira, percebe a energia que flui em uma roda de capoeira. Como diria Dr. Decânio, é o que provoca o Transe Capoeirano a que estão submetidos os jogadores. Quantas vezes já ouvimos comentários como: “Hoje, a roda estava com mais AXÉ!”. E o que pode tornar uma roda mais animada? Quais as diferenças entre uma roda boa e outra não? Existem várias diferenças, mas certamente uma delas é o coro. Um coro forte, bem feito, parece soltar na roda uma energia mágica que contagia até um expectador que estava só de passagem pela vadiação. A partir dele conseguimos verificar a animação das pessoas e já prevendo isso, mestre Pastinha registrou em seus manuscritos: “É dever de todos os capoeiristas, não é defeito não saber cantar; mais é defeito não saber responder, pelo menos o coro. É probido na bateria pessoas que não respondem ao coro.”.
Toda essa preocupação com a musicalidade que envolve a capoeira visa manter forte a ligação entre a ancestralidade e o nosso cotidiano. Visa manter viva a ligação entre a capoeira e as manifestações populares, a luta do negro guerreiro contra um sistema opressor, a vida simples do poeta sertanejo.
E você? Como tem praticando o seu cantar?
Sagu - raphaelmoreno@yahoo.com.br
São Carlos - Dez/2004
Fontes consultadas:
1. Waldeloir Rego. “Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico” , Ed. Itapoan, Salvador, 1968.
2. Herança de Pastinha. Metafísica da Capoeira. Decânio. Coleção São Salomão 3.
3. A musicalidade na Capoeira. Miltinho, Rogério, Luiz, (GPEC - NGOLO, Jun/2002)
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