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A Capoeira do Rio, Bahia & Pernambuco

A Capoeiragem do Rio, o Brinquedo de Salvador e o Frevo de Recife: O Legado da Capoeira em seus focos iniciais



Rio de Janeiro

            O Rio de Janeiro, nos tempos mais remotos, já era uma cidade turbulenta, cheia de desordeiros. E no meio dessas brigas e arruaças aparece o capoeira carioca. Segundo registros da época, um sujeito inconfundível pelo seu andar gingado com destreza e agilidade no corpo. O capoeira carioca era de fato, vadio e ocioso, porém um cidadão temido por todos, principalmente por ter fama de levar vantagens em brigas até contra pessoas armadas. 

            Suas armas se constituíam no cacete (espécie de porrete), na navalha e no próprio corpo, através dos rabos-de-arraia e cabeçadas. Esses desordeiros se juntavam em grupos chamados maltas, sendo mais famosas a dos Guaiamuns e a dos Nagôas. Entre essas maltas havia muita rivalidade o que sempre gerava conflitos. Na malta também havia um líder que comandava as desordens.

            Algum tempo atrás encontrei uma nota dizendo mostrar o primeiro aparecimento da palavra capoeira escrita no registro da prisão de Adão, pardo, escravo,acusado de ser capoeira, em 25 de Abril de 1789. [Nireu Cavalcanti, O CapoeiraJornal do Brasil, 15/11/1999, citando do códice 24, Tribunal da Relação, livro 10, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro]. 

            Mas é no século XIX, durante o período da vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, que o Rio de Janeiro passou por umas das fases mais barulhentas. Revoltados com a perda das casas e móveis, os capoeiras se encarregaram de providenciar a vingança da população brasileira saindo pelas ruas a surrar e saquear os portugueses. Os quebra-quebras e badernas viraram rotina, levando o governo a designar o Major Miguel Nunes Vidigal como comandante da polícia, com a dura missão de acabar com os capoeiras.

            Major Vidigal, como era conhecido, perseguiu as maltas se valendo do terrível chicote. Duro perseguidor dos capoeiras, ele era um sujeito muito temido como podemos perceber em alguns cantos famosos na época.

Avistei o Vidigal,
Cai no lodo;
Se não sou ligeiro,
Sujava-me todo.

            Porém, por mais estranho que possa parecer, o Major já teve os capoeiras lutando ao seu lado. Foi em 1828, por oportunidade da revolta de mercenários alemães e irlandeses convocados por D. Pedro I. Em 1845, morre Major Vidigal. Os capoeiras foram perseguidos, mas não extintos e continuaram praticamente livres durante o período da Regência e do reinado de Pedro II, sendo muito importantes em ocasiões políticas. Inclusive bastante utilizados e explorados durante a campanha a favor da Proclamação da República.

            Porém proclamada a República, os capoeiras são novamente perseguidos, sendo o paulista Sampaio Ferraz, conhecedor das artimanhas da capoeiragem, nomeado por Marechal Deodoro, como o responsável pela missão de extinção das maltas e dos capoeiras nesta fase. No artigo 402, o código penal de 1890 estabelece que:

"Capítulo XII - Dos Vadios e Capoeiras: Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correria, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. 
 
Pena: Prisão celular de dois a seis meses. 

Parágrafo único: É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeças se imporá a pena em dobro". 
 
            Assim como Vidigal, Sampaio Ferraz foi um duro perseguidor dos capoeiras, porém seus métodos eram outros. Ele decidiu, tendo o apoio de Marechal Deodoro, tratar os capoeiras da mesma maneira, independente de camadas sociais, causando inclusive um crise ministerial com a prisão de Juca Reis, filho do conde de Matosinhos. Além disso, os capoeiras pegos em vadição eram enviados para a ilha de Fernando de Noronha.
 
            Sampaio Ferraz, que também foi o criador da guarda negra formada por capoeiras, desterrou diversos capoeiras, mas também não conseguiu extinguir a capoeiragem no Rio. No final do século XIX e início do século XX, surgem novos capoeiras cariocas e até livros defendendo a capoeira como luta nacional. 
 
            Aparecem como capoeiras cariocas famosos Manduca da Praia, Camisa Preta, Caranguejo da Praia das Virtudes e em meados de 1920/30 Agenor Moreira Sampaio, o Sinhozinho (1891 - 1962). Esse último, natural de Santos/SP e radicado no Rio de Janeiro, foi um excelente formador de lutadores, utilizando método próprio, sem o uso do berimbau. 
 
            Recentemente Miltinho Astronauta, com base na obra de Alceu Maynard Araújo entitulada "Folclore Nacional", relata que foi encontrada capoeira no interior paulista entre o final do século XIX e início do século XX. Trata-se de levas de capoeiras soltas nas pontas dos trilhos da Sorocabana, que tinha como destino final a cidade de Botucatu. Na verdade eram capoeiras desterrados do Rio em consequência do Código Penal de 1890.

            Como pode ser observado nos relatos acima, a capoeiragem no Rio antigo era caracterizada pela desordem, brigas e caráter de luta, sem a utilização de instrumentos musicais. Porém, como André Lacé gosta de chamar, o "estilo de capoeira Sinhozinho" ou "capoeira utilitária" está extinto. Hoje em dia, o que se pode apreciar da capoeira carioca, na verdade é a evolução do que ora foi a capoeira baiana com orquestras, cantos e rituais ligados a religiosidade africana, no estado Rio de Janeiro.
 
Bahia

         Segundo historiadores, pelo menos desde o século XIX, os capoeiras já fazem parte da história baiana. Com sua argola de ouro na orelha e seu chapéu de lado, o capoeira baiano não foi descrito como ocioso. Era o malandro trabalhador. Na Bahia, os negros encontravam na capoeira uma forma de brincar com o corpo. Era a vadiação que normalmente acontecia nas festas de largo. Tanto é que era de costume chamar a capoeira de brinquedo.

            Porém a capoeira baiana sempre esteve ligada a religiosidade africana. Para que a vadiação estivesse completa, era necessária a bateria, a orquestra de instrumentos, composta por berimbaus, pandeiros e atabaques. Assim como vemos na capoeira que conhecemos hoje em dia, existia um verdadeiro ritual para que o jogo acontecesse, onde os capoeiras aguardavam os cantos de início (ladainhas) e seguiam para a vadiação.

            Mas mesmo com um caráter lúdico, a capoeira junto com o candomblé e outras manifestações culturas de origem africana também incomodavam o governo. Muitos baianos também foram enviados para a guerra do Paraguai (1864 - 70), nos batalhões de frente para lutar heroicamente. Já em meados de 1920, assim como aconteceu no século XIX no Rio de Janeiro, surge na Bahia um perseguidor das manifestações culturais do povo negro. Pedro Azevedo Gordilho, ou Pedrito como era conhecido, foi encarregado de acabar com os "malandros" da Bahia. A permanência de Pedrito com delegado, figura muitas vezes contraditória, é relatada por cerca de 20 anos de implacáveis batidas aos terreiros de candomblés, se valendo de porrete e facão. A fama de Pedrito também pode ser comprovada em alguns versos cantados na época:

"Acabe com este santo
Pedrito vem aí
lá vem cantando 
ca ô cabieci"
 
ou
 
"Galinha tem força n'aza,
O galo no esporão,
Procópio no candomblé,
Pedrito é no facão"
            
Porém, mantendo a ligação religiosa e também por conquistar a simpatia de pessoas da alta sociedade, a capoeira e outras manifestações culturais negras sobreviveram às perseguições.

            Samuel "Querido de Deus", Siri de Mangue, Maré, Waldemar da Paixão, Besouro, Bimba e Pastinha são nomes de alguns antigos capoeiras baianos famosos, sendo que aos três últimos, a comunidade capoeirística e a literatura reservam diversos e extensos registros. Na verdade, na Bahia existiram e ainda existem inúmeros capoeiras de grande valor e aclamados pela sociedade como mestres, sendo impossível reservar à apenas alguns, o mérito da trajetória vitoriosa da capoeira baiana.

            Hoje em dia, a capoeira que vemos conquistando o mundo é o legado, ou como alguns gostam de classificar, a evolução da capoeira baiana do passado. Sempre com a presença de seus instrumentos musicais, cantos e rituais. E correndo ao lado das discussões sobre estilos contemporâneos, segue a capoeira encantando o mundo, pronta para superar os obstáculos que vierem pela frente.

Pernambuco

            A capoeira em Pernambuco também se iniciou com os negros escravos ou forros. Porém, enquanto na Bahia existia o caráter lúdico e no Rio o clima de briga e as maltas, em Recife, o capoeira estava ligado principalmente às bandas de música e desfiles carnavalescos. A partir de 1856, durante os desfiles, devido à grande rivalidade existente entre as duas bandas locais, o grande trunfo da disputa era conseguir furar o bumbo da banda rival. Para isso, e também como proteção dos seus próprios instrumentos, as bandas desfilavam no carnaval pernambucano, protegidas pela agilidade, valentia e também pelos cacetes (pequenos porretes) e facas dos capoeiras, que desafiavam os oponentes cantando:

Cresceu, caiu.
Partiu, morreu.
            
            Também em Pernambuco apareceram vários capoeiras e valentões famosos, os brabos como eram conhecidos. Nomes como Antônio Padeiro, João Sabe Tudo, Jovino dos Coelhos, Antônio Tutano, João Cale eram sinônimos de arruaça e brigas. Destaque especial para Nascimento Grande, descrito como um homem de porte físico avantajado, grande força e com enorme habilidade no manejo da bengala, punhal e em até em casos extremos, a pistola. Suas histórias de valentia são famosas, onde se utilizava dos braços e pernas (capoeira) para derrubar grupos inteiros de soldados de polícia.
            
            O fim dos brabos recifenses aconteceu mais ou menos em 1912. De Pernambuco também foram enviadas dezenas de capoeiras para a Guerra do Paraguai. E da mesma forma que os capoeiras cariocas e baianos, muitos por lá ficaram depois de lutar bravamente. Assim era a capoeira pernambucana até as primeiras décadas do século XX, e desde então as valentias e as famosas histórias dos capoeiras seguem imortalizadas pela poesia de cordel. Para ilustrar esse fato, transcrevo a estrofe final de um cordel de João Martins de Ataíde.
  
"Nascimento ficou velho,
seu cabelo embranqueceu
mas no seu rosto enrugado
um homem nunca bateu.
Sendo assim tão iracundo,
com honras viveu no mundo
e honrado também morreu." 

            O fim da capoeira de Pernambuco coincide com o nascimento do passo ou frevo (o passo é a dança e o frevo, a música), que segundo pesquisadores é o legado da capoeira daquelas bandas. Além da agilidade e expressão corporal, o pequeno guarda-chuva, que hoje o folião do frevo maneja com habilidade, seria uma lembrança do antigo cacete, tão utilizado nas brigas do passado.

            Mas a capoeira pernambucana do modo contado acima também não existe mais. Segue em Pernambuco, assim como aconteceu no Rio de Janeiro, a capoeira de origem baiana, com seus rituais e instrumentos musicais próprios. É claro que hoje em dia, em cada estado a capoeira se apresenta com alguns aspectos específicos da região, decorrentes do dinamismo e da própria evolução da vida.

            Mas o que existe de especial nos rituais da capoeira lúdica? Por que apenas a capoeira baiana conseguiu sobreviver às perseguições e ao tempo? O que a musicalidade da capoeira nos ensina?

Sagu / São Carlos - 16/11/2004

Fontes consultadas:

  1. Francisco Pereira da Silva. "Itinerários da capoeira". Ed. Monsanto.
  2. Inezil Penna Marinho. "Subsídios para o estudo da metodologia do treinamento da capoeira". Imprensa Nacional, 1945.
  3. André Luiz Lacé Lopes. "A Capoeiragem no Rio de Janeiro: Sinhozinho e Rudolf Hermany". Ed. Europa. 2002.
  4. Waldeloir Rego. "Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico". Ed. Itapoan, Salvador, 1968.
  5. Nestor Capoeira. "Os fundamentos da malícia". Ed. Record. 8a edição, 2001.
  6. Jangada Brasil. http://www.jangadabrasil.com.br.
  7. Manuel Raimundo Querino. "A Bahia de outrora". 1916.
  8. José Alexandre Melo Morais Filho. "Festas e tradições populares no Brasil". 1946.
  9. Ângela Lühning. "Mito e realidade da perseguição policial ao candomblé baiano entre 1920 e 1942". Revista USP n°28, dez/95 a fevereiro/96.
  10. Valdemar.Valente. Pastoril no Recife. Brasil açucareiro, agosto de 1969.
  11. Jornal do Capoeira. http://www.capoeira.jex.com.br.
 
Autor: Raphael Pereira Moreno

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