No início do século 19, grupos de capoeiristas usavam as ruas cariocas para exibir suas habilidades e resolver as diferenças. Enquanto a polícia reprimia os lutadores, a elite temia uma revolta dos escravos.
por Antônio Neto
O escravo Felipe Angola caminhava sozinho pelas vielas do Rio de Janeiro. Naquele 10 de setembro de 1810, estava longe dos olhos do seu senhor, o comerciante Francisco José Alves, mas era observado de perto. De repente, foi surpreendido por uma patrulha da Guarda Real.
Emboscado, tentou uma manobra que dominava: atacou os guardas com um movimento de pernas. Sua habilidade e força não bastaram para conter os três policiais, que o levaram preso.
Felipe se tornou o primeiro escravo a ir para trás das grades no Rio de Janeiro por ser capoeirista. A arte marcial (ainda) não era um crime. Só o suficiente para transformar seus adeptos em criminosos em potencial, para uma polícia que agia à revelia da lei.
Praticada por negros de diversas origens africanas, a capoeira não era proibida no início do século 19. A elite carioca, entretanto, se sentia ameaçada pela presença marcante dos capoeiristas (ou "capoeiras") nas ruas.
Enquanto as gangues de lutadores usavam sua arte marcial para disputar território e se defender da polícia, os brancos assistiam a essa agitação temendo que os escravos resolvessem se rebelar para valer. Esse medo tinha sido potencializado pelas notícias da revolta ocorrida no Haiti em 1791. Na ilha caribenha, os escravos tinham abandonado as plantações de cana, destruído engenhos e massacrado proprietários de terra e colonizadores franceses.
Entre os cariocas, a proporção de escravos não parava de aumentar. Em 1808, quando a família real portuguesa chegou ao Rio fugindo dos exércitos de Napoleão, houve uma explosão demográfica na cidade.
Os mais de 15 mil portugueses que deixaram Lisboa para acompanhar o rei Dom João VI fizeram crescer a demanda por cativos. Em 1821, os escravos eram 46 mil, metade da população do Rio.
Nas freguesias onde viviam, muitas vezes isoladas pela geografia carioca, os capoeiras passaram a se reunir em "maltas". Essas gangues, formadas por negros africanos e brasileiros, escravos e alforriados, quando se encontravam lutavam até sangrar.
"As maltas viviam uma rivalidade crônica, o que era esperado em uma sociedade regida pela violência, e não pela harmonia entre as raças", diz o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, autor de A Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Graças aos arquivos policiais que documentavam as prisões dos capoeiras, historiadores como Soares reconstituíram o que ocorria nas ruas daquela época.
Os registros da polícia também ajudaram a entender o nascimento da arte marcial. Como a maioria dos escravos brasileiros ficava na zona rural, durante muito tempo chegou-se a acreditar que a capoeira teria nascido nas senzalas ou quilombos. “A capoeira aparece nos documentos do século 19 como hegemonicamente urbana”, afirma Soares, que considera o Rio como um dos berços dessa luta, no século 17. Nos documentos históricos em que Soares fez sua pesquisa, há apenas um caso em que a palavra “capoeira” é mencionada sem se referir à luta. Esse era o nome de um tipo de cesto de palha usado pelos escravos para carregar as mercadorias na zona portuária do Rio. Esses estivadores negros foram os primeiros a exibir as técnicas da arte marcial, competindo entre si nas praias para ver quem era o mais hábil. O nome “capoeira” teria passado dos cestos para os escravos e para seus movimentos de ataque e defesa.
Quando saiu das praias, a capoeira deixou de ser apenas diversão e passou a arma de combate. As disputas se espalharam pelas ruas que hoje formam o centro histórico da cidade. Os escravos eram obrigados a cruzar a cidade para realizar suas tarefas diárias, e as brigas entre os capoeiras costumavam ocorrer quando rivais se encontravam ao longo do caminho.
A maioria dos escravos urbanos tinha como rotina fazer compras em armazéns e quitandas, livrar-se do lixo e, principalmente, trazer água limpa para uso doméstico. “Não havia água encanada e era preciso buscá-la todos os dias. Assim para manter seu domínio informal, escravos de uma determinada área tendiam a repelir cativos de outros lugares”, diz Soares. As fontes da cidade estavam sempre rodeadas de gente. O maior reservatório público ficava no largo da Carioca. Seu chafariz, construído em 1723 (e demolido em 1925), assistiu a exibições dos capoeiras.
A ausência de leis que proibissem a capoeira não impediu que os castigos contra seus praticantes se tornassem cada vez mais severos, principalmente após a chegada da família real portuguesa. Para as autoridades, qualquer manifestação cultural dos negros passou a ser mal vista. A capoeira era alvo das patrulhas mesmo quando não provocava desordem. Em 31 de maio de 1815, por exemplo, dez escravos de uma mesma malta foram presos pela Guarda Real sob a alegação de que estavam praticando "capoeiragem".
Chibatadas e servidão
A prisão foi apenas a primeira punição para os capoeiras. Mas ela passou a ser acrescida de castigos corporais. Um edital oficial de 6 de dezembro de 1817 estabeleceu a pena de 300 chibatadas aos praticantes da arte presos em flagrante. Em abril de 1821, o intendente geral de polícia, Paulo Fernandes Viana, recomendou ao governo que as festas de negros (palco de prática de capoeira) fossem banidas.
No Brasil de Dom Pedro I, os capoeiras detidos pela polícia do Rio de Janeiro ganharam um destino certo: os trabalhos forçados, que haviam se tornado comuns no fim da colônia, combinados às chibatadas. Em agosto de 1824, começou a ser erguido um dique para o conserto de grandes navios na ilha das Cobras, próxima à orla carioca (a construção só ficaria pronta em 1861). A necessidade de mão-de-obra fez com que muitos dos capoeiras presos no Arsenal da Marinha (então a maior casa de detenção do Rio) fossem obrigados a trabalhar lá. Seus senhores ficavam indignados. Não necessariamente por razões humanitárias - os cativos eram vistos como propriedades caras que não deviam se desgastar trabalhando de graça para o Estado.
O africano Francisco Congo foi um dos que receberam a pena de três meses de trabalhos forçados no dique da ilha das Cobras. Às 5 da tarde de 29 de setembro de 1824, ele foi preso com outros três escravos por praticar capoeira no cruzamento das ruas do Sabão e da Vala (atual rua Uruguaiana, no centro do Rio). O senhor de Francisco, Domingos José Fontes, apelou ao imperador para que tivesse seu escravo devolvido. Alegou que o cativo lhe servia há mais de dez anos. Ao pedido escrito, Fontes anexou uma certidão médica dizendo que Francisco não podia com trabalhos pesados. Lamentou em vão a falta do escravo, que seguiu à disposição do Arsenal da Marinha e ainda recebeu 200 açoites, conforme estipulado por uma nova lei daquele ano.
Em poucos anos de Império, a arbitrariedade na aplicação das penas aos capoeiras parecia sem limite. O forro Manoel Crioulo, por exemplo, foi sentenciado a dois anos de trabalhos em obras públicas e mandado ao Arsenal da Marinha em 14 de maio de 1827, por ter dado "uma bofetada de mão aberta". Mas, mesmo sendo considerados marginais e desordeiros pelo Estado, os capoeiras acabaram sendo solicitados para, quem diria, manter a ordem. Em junho de 1828, as tropas estrangeiras do Exército Imperial, formadas principalmente por irlandeses e alemães, ameaçaram um levante militar por conta do atraso no pagamento de seus soldos. Armados, com o apoio das autoridades, escravos e capoeiras formaram milícias e conseguiram conter a agitação dos mercenários amotinados. Foi uma demonstração de poder e tanto.
Guerra nas ruas
O ano de 1831 foi marcado pela oposição dos liberais ao reinado de Dom Pedro I. Eles acusavam o imperador de discriminar os brasileiros e cometer abusos. Em contrapartida, portugueses defendiam a manutenção do monarca e de antigos privilégios. Os ânimos andavam exaltados.
Em 11 de março os portugueses enfeitaram janelas e sacadas de suas casas e comércios na região da Candelária. Saudavam o imperador, que chegava de uma viagem a Minas Gerais. Quando passeava pela rua da Quitanda, o sapateiro negro José Antônio foi insultado por um grupo de lusos. Eles exigiam que ele e suas duas acompanhantes tirassem do braço os laços que ostentavam, com as cores da pátria brasileira. Os três se recusaram e se queixaram à polícia sobre a agressão. A partir daquele momento, o acirramento entre portugueses e brasileiros entrou numa escalada sem volta.
Durante o dia 13, enquanto militares se insurgiam contra o "imperador tirânico", um grupo de negros armados de paus ocupou as ruas ao redor do largo da Carioca bradando "constituição" e "independência". Os monarquistas saíram a campo com o apoio de marinheiros e caixeiros portugueses. Xingamentos deram lugar a pedras, cacos e garrafas. Capoeiras distribuíam golpes certeiros enquanto os brancos se defendiam como podiam. Foram feitos disparos de pistolas e pelo menos dois negros caíram mortos. A multidão se dispersou, temporariamente.
O temporal que caiu sobre a cidade naquela noite acalmou os ânimos, mas os conflitos seguiram. Já era madrugada do dia 15 quando uma patrulha da polícia evitou que mais de mil homens armados se digladiassem em pleno Paço Imperial. A sorte de Dom Pedro, contudo, foi selada por esses episódios, conhecidos como "as noites das garrafadas". A elite brasileira e o Exército seguiram pressionando por mudanças no regime, até que, em 7 de abril de 1831, o monarca abriu mão do trono em favor do filho de 5 anos. Como o menino era jovem demais, os liberais assumiram o governo, no período chamado Regência.
O apoio dado pelos capoeiras à queda do imperador, entretanto, não garantiu a eles nenhum privilégio. Pelo contrário: o sucesso de sua atuação nos conflitos de rua acabou sendo interpretado pela elite como uma ameaça. Afinal, se voltassem a agir juntas, as gangues de escravos do Rio representariam um sério perigo para os senhores. Dessa forma, os primeiros anos do período regencial foram marcados pela expectativa de um levante da chamada "gente preta".
O temor acabou se traduzindo em repressão. Mas a Polícia da Corte não fez uso só da força. Com táticas de espionagem e delação, ela sufocou uma a uma todas as agitações promovidas sob a liderança dos capoeiras. A pior ocorreu em 1835, com a repercussão da Revolta dos Malês, iniciada em 25 de janeiro, em Salvador. Contida na Bahia em dois dias, a insurreição acabou não chegando ao Rio. Os poucos negros que tentaram insuflá-la foram detidos. Nos anos posteriores, as gangues não conseguiram atuar de forma coesa. Isoladas, eram presas fáceis para as autoridades e não tinham força para articular um movimento que exigisse direitos e liberdade. "Os cativos não representavam um grupo social coeso. A população escrava brasileira era fragmentada", afirma o historiador Soares. "Se aqui tivesse havido uma suposta unidade racial, pensamento só vigorante a partir do fim do século 19, a escravidão teria sido eliminada em dias, como ocorreu no Haiti."
Nem mesmo a abolição da escravidão e a proclamação da República serviram para acabar com a repressão contra os capoeiras. Em 11 de outubro de 1890, foi promulgado o código penal do novo regime. Em seu artigo 402, ficou estabelecida uma pena de dois a seis meses de prisão para quem praticasse a arte marcial nas ruas. Para os chefes das maltas, essa punição seria aplicada em dobro, enquanto os reincidentes poderiam ficar presos por até três anos. A capoeira, finalmente, havia se tornado crime, para o alívio da elite que vivera amedrontada por quase um século.
Fonte: Revista Abril
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